01. Trajetória Pela Arte
1. UMA TRAJETÓRIA PELA ARTE
Por aliar o processo de produção da obra ao processo da própria
investigação, esta dissertação apresenta um caráter dinâmico e dialético, tendo
em vista a inserção da pesquisadora como artista-produtora que constrói sua
obra, ao mesmo tempo em que procede à investigação sobre os conceitos que
a envolvem e que lhe dão forma e existência.
Algumas palavras chaves surgem desde o projeto apresentado para
ingresso no curso de Mestrado até a presente dissertação: artes visuais,
objeto, processo criativo, lúdico, jogo, inter-relação, cotidiano, transformação,
poético.
Entre ações e reflexões, o meu olhar pontua algumas questões,
principalmente decorrente do fato de o mestrado ter me proporcionado uma
retrospectiva profissional.
Essa retrospectiva da minha trajetória pela arte, inicia-se desde a
graduação em Educação Artística e Artes Plásticas, na Faculdade Santa
Marcelina (FASM) em 1975, até os dias de hoje, abrangendo meu percurso
profissional como arte educadora, arteterapeuta e artista plástica.
Aponto algumas experiências nessa caminhada que são relevantes para
o questionamento central desta dissertação: Como transformar objetos do
cotidiano em “objeto artístico”, trazendo-lhes um sentido em tempos atuais e
expondo-os ao fruidor de forma que este se aproxime da obra e possa atuar
como co-participante.
Recolho 20 agendas minhas, usadas e guardadas desde 1984, para
iniciar minha produção em artes visuais. Ao mesmo tempo, pesquiso o
surgimento do objeto inserido na história da arte e de obras realizadas por
artistas que se dedicaram a esse tipo de pesquisa.
Realizo minha produção, a princípio, com fotocópias das páginas das
agendas. Formo tabuleiros e objetos, que chamo de jogos poéticos. Exponho
esses jogos e recolho algumas reações. Deixo o fruidor livre para compor, com
poucas regras já delineadas, de maneira que ele atue como co-participante.
Desta forma, continuo minha pesquisa, deixo o jogo poético em repouso
e inicio a interferência nas próprias agendas, com diferentes ações artísticas,
ressignificando-as e tornando-as agendas-objeto, incluindo-as na categoria de
livros-objeto.
O processo de execução da obra e a sua leitura são permeados pelo
estudo de diferentes temas. A temporalidade é aberta e redimensionada
poeticamente a partir de um cotidiano inscrito cronologicamente. O objeto
colecionado e o jogo poético se inter-relacionam de forma lúdica como
integrantes da experiência criativa. A escrita imagem, abordada como produção
se dá na correlação entre, riscos, rabiscos, fotos e caligrafia contidos nas
agendas. A qualificação das agendas-objeto como livros-objeto, inseridos no
contexto histórico artístico. A inter-relação da artista, sua obra e o fruidor
atuante como co-participante.
Quanto à exposição das agendas-objetos, faz-se importante serem
manuseadas e folheadas, de modo que o público possa ter contato direto com
a obra, e desta forma, atuar criativamente construindo uma agenda pública,
disponível a intervenções.
A minha trajetória, atualizada no percurso dessa pesquisa, vem
confirmar que a arte é o centro da minha vida profissional, em qualquer papel
que eu desempenhe, configurando a fonte de riqueza que emana do ser
humano e o poético instaurado no processo de transformação do cotidiano em
transcotidiano.
1.1. RETROSPECTIVA
Desde1975, ano em que me formei em Educação Artística e Artes
Plásticas na Faculdade Santa Marcelina (FASM) em São Paulo, uma história
de mais de 30 anos vem sendo traçada com estudos e vários trabalhos na área
das artes, trazendo-me até este momento em que termino o curso de
mestrado. É importante relatar aqui essa caminhada para contextualizar a
minha atual produção, pesquisa, reflexão, envolvimento e relações com as
artes visuais, que acontecem desde o início deste curso de Produção, Teoria e
Crítica em Artes Visuais, em 2004.
Ainda na época em que cursava a graduação, fui assistente na disciplina
Projeto Educativo da qual me tornei, depois, docente, concomitantemente a
outros cargos assumidos em diversos cursos de graduação ou especialização
sempre ligados à arte.
O perfil de educadora mostrou-se latente e tem sido a linha mestra deste
caminho profissional, com a presença constante da arte como centro de
interesse e depositária da crença do quanto ela é importante na vida das
pessoas.
Nessa trajetória, a atuação de docente expandiu-se para outros públicos,
abarcando diferentes faixas etárias, desde crianças, adolescentes e adultos até
pessoas da terceira idade, assim como também para diferentes espaços, como
atelier particular, escolas, faculdades, empresas e outras instituições tanto
educacionais como de saúde, públicas e particulares.
Outro interesse profissional na área das artes, delineou-se no curso da
graduação, quando entrei em contato com a obra de Lygia Clark, a quem tenho
como referência em produções como as esculturas móveis e os experimentos
sensoriais onde o espectador pode interagir com a obra, além da atuação da
artista como terapeuta.
Cursei a especialização em Arteterapia Gestáltica, pelo Instituto Sedes
Sapientiae, onde atuo, desde então, como docente, favorecendo aos alunos
experiências em atelier terapêutico e processos criativos frente à arte e à vida.
Outro encontro profissional que colabora para com essa trajetória
profissional é do trabalho que desenvolvi em Brinquedoteca, uma experiência
do lúdico em relação à arte, onde o brinquedo, a brincadeira e o jogo permeiam
o mundo da imaginação e do criativo.
Sem dúvida, não posso esquecer das bases filosóficas e teóricas que
estruturam essa caminhada pela arte, dando fundamentos aos processos de
trabalho pessoal e com o outro.
Entre tantos autores estudados, Gombrich (1993) marca o início dos
estudos em História da Arte, Lowenfeld (1977), Guilford (1975), Moreno (1928),
Jung (1964) me referenciam no processo criativo e de sensibilização, enquanto
Arheim (1980) e a Gestalt dão bases à construção e leitura do mundo
iconográfico, com suporte no olhar fenomenológico.
A Fenomenologia traz luz a minha visão frente à arte, à construção e
leitura da obra e seu produtor. Ajuda a desmistificar a arte como processo
educativo e terapêutico, reafirmando o olhar poético que tanto incentivo e
busco, seja na produção pessoal como artista plástica, seja com o outro em
atelier, no papel de arte educadora ou arteterapeuta. As palavras de Bachelard
elucidam essa postura fenomenológica no sentido da vivência do aqui e agora
como sendo o fato real que traz à imagem uma “fala” tal como ela se dá.
[...] um psicólogo dirá que nossa análise limita-se a relatar
‘associações’ audaciosas, audaciosas demais. O psicanalista
talvez concorde – pois tem esse hábito – em ‘analisar’ essa
audácia. Um e outro, se tomarem a imagem como ’sintomática’,
tentarão encontrar na imagem razões e causas. O
fenomenólogo considera as coisas de outro modo; mais
exatamente, ele encara a imagem tal como ela é, como o poeta
a cria; e tenta fazer dela um bem seu, alimentar-se desse fruto
raro; leva a imagem à própria fronteira daquilo que ele pode
imaginar (1996, p. 229).
Assim, a arte passa a existir como valor simbólico e carregada de “vida”,
tanto na obra da artista como na dos alunos e pacientes, trazendo para o
processo descobertas de conceitos que ficam apreendidos, porque
experienciados, vividos e lidos fenomenologicamente.
Ao ministrar aulas em atelier de artes visuais, arte educação, arteterapia,
trabalhar em atelier terapêutico e produzir artisticamente, percebo que a
mesma base teórica e filosófica serve de estrutura para essas atuações e dão
embasamento para que a arte se manifeste como um processo vivo, e reforço
a percepção das sutis diferenças nos papéis profissionais por mim
desempenhados.
Nessa trajetória profissional, inclui-se a vivência em atelier de artes
visuais e atelier terapêutico, onde a produção dos alunos se constitui de
exercícios com desenho, pintura, escultura, gravura, leitura de imagens,
história da arte e experiências com objetos. Algumas dessas experiências são
relatadas, mais adiante, porque levantam questões importantes em relação ao
objeto e à arte, o que me inspira a querer pesquisar, como artista, a produção
com objetos pessoais que se tornam arte, tema central dessa dissertação.
Paralelamente a esses desempenhos profissionais, sempre desenvolvi
produções artísticas em aquarela, pintura em acrílico, algumas esculturas e
instalações, participando de exposições e salões, com a clareza de que a
minha produção em arte objetiva o expressar e pesquisar livre e criativamente,
sem a preocupação de inserção no mercado artístico.
Nesse sentido a carreira profissional não foi desenvolvida focando a
artista plástica em si e suas produções, mas estas foram dedicadas a
pesquisas pessoais mantendo sempre o interesse em atualizar as experiências
estéticas e trocá-las com o público.
A necessidade dessa retrospectiva se deu pela busca de uma
verdadeira intenção à minha pesquisa de mestrado, quando retomo a minha
trajetória pela arte e percebo o que no presente me traz sentido pesquisar.
1.2. ATUALIZAÇÃO
Essa retrospectiva veio acentuar o meu interesse na atuação como
artista e pesquisadora em artes, tirando proveito dessas experiências
anteriores, para desenvolver um tema da atualidade e que incorpore o fruidor
como participante ativo.
Em paralelo a essas realizações profissionais, venho colecionando
agendas, por mim usadas há mais de 20 anos, desde 1984, e que nesse
momento surgem como objetos possíveis de serem explorados num processo
criativo e poético, abrindo para uma nova produção artística, com o foco no
contemporâneo, em que o objeto se faz instigador de novos questionamentos:
Como transformar o material objeto (agendas) em objeto de arte?
Como transpor esse objeto do tempo cotidiano para o tempo poético das
artes visuais?
Quais categorias de linguagem em artes visuais permitem essa
transposição?
Como facilitar e aproximar a inter-relação obra e público fruidor?
Que referências de obras e artistas buscar para apoiar o conceito em
minha produção?
De que maneira esse objeto se insere em tempos atuais?
Desta forma, a dissertação ora em desenvolvimento se caracteriza como
uma pesquisa em arte contemporânea, no centro da qual o objeto permite
transpor um cotidiano vivido em tempo passado, marcado, registrado e
controlado, em espaço poético atual e compartilhado.
Inicialmente resolvi investigar a idéia de um cotidiano inserido nessas
agendas, que se torna transcotidiano ao sofrer a interferência poética da artista
por meio da produção de um trabalho em arte, e tornar o fruidor co-participante
em seu cotidiano. Para tanto, ao olhar minha produção pessoal, aponto a
seguinte proposição: Transformar o objeto agenda em objeto de arte,
instaurando-lhe um novo conceito.
O primeiro foco de interesse é no objeto agenda, que sai do seu papel
do cotidiano como matéria que tem uma função utilitária e ganha, pelas mãos
da artista e com uso de multimeios, um novo olhar, um outro sentido simbólico
e metafórico.
O objetivo central é produzir uma obra transcotidiana para ser colocada
e interagida no cotidiano. Esse jogo de palavras firma na produção artística em
foco, o conceito de jogo poético, ao transformá-lo do cotidiano e reintegrá-lo ao
cotidiano.
Outra reafirmação surge na relação do jogo poético do objeto e dos
livros-objeto com o fruidor, de forma que este se transforme em participante
ativo, provocando a inter-relação entre a obra e o público, reafirmando o
conceito intrínseco na produção artística.
Como artista e pesquisadora em arte, busco a postura de divulgar a
produção artística e facilitar seu acesso às pessoas para que possam entrar
em contato direto com a obra, senti-la mais de perto, e assim, refletir sobre a
arte e transformar o seu olhar na vida.
Os fundamentos dessa atitude em artes visuais encontram seu respaldo
filosófico e teórico em alguns pensadores, na própria arte, na história da arte,
em produções de outros artistas que também tiveram e têm o desejo de pensar
o cotidiano e de como transformá-lo pela arte, e na relação artista, obra e
fruidor. Tem sido muito importante no processo criativo de compor esta
dissertação, “conversar” com outros artistas e suas obras como referências e
reflexões.
Assim, as agendas passam a ser o centro desta pesquisa, no processo
de tirá-las do cotidiano para o transcotidiano, em tempo presente, mas que se
volta ao passado e atualiza-se novamente no aqui e agora.
Ilustração1: “Fechada em Si”