02. Do Cotidiano ao Tempo Poético
2. DO COTIDIANO AO TEMPO POÉTICO
“O tempo e a memória incorporam-se numa só
entidade; são como os dois lados de uma
medalha.”
(TARKOVSKII, 1998, p. 64).
As agendas nos remetem ao cotidiano, registram aquilo que acontece
habitualmente e que se faz todos os dias, em um percurso do tempo que é
sentido momento a momento. As agendas que coleciono há 20 anos, marcam
esse cotidiano em momentos por mim vividos num determinado tempo e
espaço. Tempo que é registrado cronologicamente.
Essa dimensão relacionada ao tempo, nos faz reportar à mitologia grega
onde encontramos o mito de Chronos e Kairós, que contêm dimensões e
simbologias diferentes de temporalidade.
Chronos é a dimensão da temporalidade como tempo impessoal,
cravado no cotidiano. Significa o tempo cronológico, mensurável, do universo
material, concreto, um tempo de natureza quantitativa, que controla
possibilidades e estabelece limites, tempo das ações repetitivas, dos relógios,
calendários e agendamento.
Registrar em tempo de Chronos é o sentido que as agendas têm como
função diária. Marcam um tempo (ano, meses, dias, horas, minutos) e espaço
(onde) de realizações (o quê), de forma que os fatos e o controle fiquem
registrados e onde, muitas vezes, a relação do tempo pessoal se escraviza ao
tempo impessoal.
As agendas guardam registros de minha vida no dia-a-dia, com fatos e
momentos que se misturam no cotidiano: compromissos em datas e horários
marcados, orçamentos, pagamentos e recebimentos, controle e descontrole
organização e desorganização, o passo a passo de construções e
desconstruções, gerando registros densos e vigorosos.
Segundo Carvalho (2006) Chronos é uma tomada de medida normativa
que os gregos criaram como base de classificações necessárias ao com-viver.
Com o surgimento da técnica moderna, estas passaram a ser tomadas como
“objetivas”, fazendo com que a objetividade cronológica fosse acreditada como
sendo o real, mas que não dá conta da totalidade do existir.
Nesse sentido, uma outra experiência de tempo vem para dar
consistência necessária à vida humana, uma outra dimensão de temporalidade,
denominada Kairós.
O termo Kairós, em grego, significa o momento oportuno. Revela o
momento certo para a coisa certa. Kairós simboliza o instante singular que
guarda a melhor oportunidade, sendo o momento crítico para agir, a ocasião
certa, a estação apropriada. Representa um tempo não absoluto e nos convida
a ir além da experiência cotidiana. Caminhar pelo tempo de Kairós requer
coragem, um tempo impossível de ser medido ou avaliado pelos instrumentos e
percepções humanas, pois sua natureza é qualitativa, governa o tempo vivido,
aproveitado, saboreado, sentido, bem utilizado.
Em meu processo com as agendas, a dimensão temporal atinge uma
dinâmica de contraponto ao tempo de Chronos, quando o tempo de Kairós
penetra as limitações impostas pelo tempo cronológico, linear e rígido, inserido
no conceito e na prática das agendas. Passo a explorá-las na direção do que
nelas já se mostra presente em esboços de desenhos, citações poéticas,
idéias, projetos, em busca de um sentido na expressão artística. Adentro pelo
tempo de Kairós, com o olhar e a postura da artista que busca o experimento
do novo, do criativo, do poético, da transformação das agendas em objeto
artístico e do cotidiano transformado em transcotidiano.
Segundo Carvalho (2006), Kairós é a temporalidade modalizada como
poiesis, no seu modo próprio de vigorar e que deixa as coisas aparecerem em
seu ser, com um fazer pro-dutor. Poiesis é um desencobrir com solidez,
enraizado por ter memória. E salienta que,
Heidegger evoca a figura mitológica Mnemosyne (memória),
filha da união entre o céu e a terra, tendo como filhos o jogo, a
dança, o canto e a poesia. As criações poéticas são filhas da
memória e surgem ‘quando se cultiva o pensar na lembrança’
Para ele, o poético não é algo que simplesmente adorna e
alegra a vida humana, fazendo-nos fantasiar e sobrevoar o
real. Poiesis é o modo humano de habitar a terra. A poesia é o
construir por excelência. Trata-se de um abrir-se ao
inesperado, rompendo com as significações já dadas (2006, p.
90).
Como inserir as agendas nessa temporalidade modalizada como
poiesis? Como reconstruí-las em tempo de Kairós?
Percebo aqui o sentido pleno que tenho dado à construção dessa
dissertação, partindo da retrospectiva de minha vida profissional e do resgate
das agendas usadas no passado, incluindo obras e experimentos realizados,
onde a memória é revisitada em favor de lembranças cultivadas em tempos
habitados e vividos. Ressignifico esse tempo, tirando as agendas da sua real
condição de cronologia para a dimensão da poesia. Tempo poético que
transforma as agendas em arte, com interferências em sua estrutura
configurada como registro, transformando-as em imagens poéticas e
redimensionando os fatos vividos, lembrados e registrados na memória, para
formar a minha historicidade.
Os fatos ocorridos no cotidiano marcam a nossa experiência, como nos
explica Merleau-Ponty:
Os estudos desse ‘mundo vivido’ definem as essências, seja
ela da percepção ou da consciência, numa tentativa de
descrição direta de nossa experiência tal como ela é,
abarcando um relato do espaço e do tempo. Repõem as
essências na existência, e não pensa que se possa
compreender o homem e o mundo de outra maneira senão a
partir de sua ‘facticidade’. Tudo aquilo que sei do mundo,
mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de
uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência
não poderiam dizer nada. Todo universo da ciência é
construído sobre o mundo vivido (1999, p. 1e2).
Assim, todo universo da arte é também construído sobre o mundo vivido.
Ao perceber essas experiências vividas registradas nas agendas, e transformálas
em objeto de arte, o olhar transforma o cotidiano: o transcotidiano que se
processa no fazer artístico. Essa construção do olhar percebe, interpreta e num
processo criativo, se traduz na linguagem artística (2002). Assim, todo universo
da arte é também construído sobre o mundo vivido.
Para Bosi, “essa misteriosa realidade (no entanto, familiar e cotidiana) é
a nossa escola do olhar, e o seu método encontra na descrição do fenômeno
pictórico um terreno fértil de exercício“ (2002, p. 80/81).
No primeiro momento revejo as anotações nas agendas. Elas se
mostram repletas de simbolismo, sentimentos, sensações e de memória, onde
o processo de desorganização clama por organização, e o organizar
desorganiza o visual. O processo de busca eclode, ficando entre a razão e a
emoção que é expressa nos riscos, rabiscos, letras, palavras, sugerindo
imagens a partir dessa escrita.
As agendas registram no presente o que já se tornou passado e
“organizam” o futuro. Marcam o tempo atual que de imediato se transforma em
passado e projeta o futuro. Escrita-imagem, carregada de recordações,
acontecimentos, esperanças, planos, realizações, poesia, contas, amor,
doença, morte, em registros vivos, mudanças, objetivos por alcançar, o velho e
o novo – temas presentes na vida em tempo real. As agendas “falam” de vida e
morte, dentro do tempo que é, foi e virá.
É por sermos originalmente temporais que construímos a
‘contagem do tempo’, dele advindo a compreensão de ser
como historicidade, a qual por sua vez, nos permite ser guiados
pela interpretação que orienta nossos projetos no cotidiano [...]
A temporalidade só pode ser experimentada fenomenalmente,
mostrando-se em si mesma, num modo privilegiado de
abertura em que o ser-aí projeta-se em direção a si mesmo, no
sentido de realizar o poder-ser mais próprio (CARVALHO,
2006, p. 75).
Sincronicamente ouço o meu nome “Ir-a-si” na fala de Fernando
Almeida1 quando da apresentação da tese de doutorado da Clara Carvalho, da
qual tive a oportunidade de participar. E nesta sonoridade do meu nome,
encontro como que uma chamada ao meu processo. Almeida fala do ir-a-si
como fonte de verdade para projetar o vir-a-ser.
A filosofia fenomenológica fundamenta todo o meu projeto, não só desse
mestrado, mas de vida e de arte. Traz sentido à minha pesquisa e existência
no sentir, pensar e fazer arte.
O apanhar-se propriamente no resgate do sentido, esclarece Almeida:
[...] se dá quando a convocação se dirige ao passado e vai
estabelecendo uma meada de sentido que, transpassando toda
a nossa história, permite o reconhecimento dessa convocação.
O fio de sentido vai se perfazendo quando o que nos convoca
nos apanha no passado, tendo ressonância e aderindo-se ao
1 Fernando Almeida professor de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).
modo como temos sido. Portanto, é na história vivida que o
sentido de um projeto deve ser buscado (apud CARVALHO,
2006, p. 79).
Nessa perspectiva, Heidegger nos aponta a importância do
discernimento das nossas heranças para o atendimento consistente das
convocações, que precisam ser resgatadas e atualizadas por serem o esteio do
projetar-se. O modo como trazemos tais heranças, mesmo que encobertas,
antecipa ações, regula nossa abertura e possibilidades. O passado,
originariamente não é algo que está atrás de nós, porém, propiciando a
abertura ao presente, nos antecipa. Diante da maneira como temos cuidado de
ser é que nos situamos para responder ao apelo (apud CARVALHO, 2006, p.
80).
No encaminhamento desse projeto, surge a necessidade de trazer para
a matéria as realizações do passado e os projetos sonhados para o futuro.
Materializar em arte, as agendas que são registros de subjetividades
corporificadas. Destacar por meio de um novo olhar, outra relação, agora
distanciada, poetizada. Deslocar o marcar, o registrar, tirando-as da função que
lhes é atribuída como agendas – olhar a escrita como imagem e o conteúdo
com outra simbologia, registrar um novo tempo – de Kairós.
Libertar esse corpo materializado com determinadas funções, para um
corpo na arte – objeto arte – de palavras aprisionadas que se libertam
poeticamente em arte. Ao libertar as agendas, retiro o peso do compromisso,
do tempo cronológico linear, do que tem que ser, do que tem que ser feito, e as
diluo em pedaços, com mais fluidez, mais leveza, desmanchando todo o
acúmulo ali marcado, como diz Lucrecia Ferrara “esvaziando, com isso, o
significado daqueles objetos e materiais rotineiros que, por estarem fora do seu
universo habitual, perdem a familiaridade que os envolvem” (1981, p. 106).
Nos anos 60, a Pop Art traz uma nova maneira de perceber a realidade,
a partir do descondicionamento perceptivo que, segundo Lucrecia Ferrara
assume o aspecto positivo da negação e encontra, positivamente, a negação
da arte. E acrescenta “que a descaracterização sintática do quotidiano faz com
que o receptor acabe por rever seu repertório rotineiro, suas crenças e valores”
(1981, p.114/115).
Ilustração 2: “Libertação - tempos de Ir-a-si “
2.1 TEMPO DE CRI-AÇÃO DO JOGO POÉTICO I
A subjetividade registrada em cada pedaço de papel das agendas,
“pede” para saltar das páginas, “de dentro para fora, da não significação para a
ressignificação”, da bidimensionalidade para a tridimensionalidade no espaço.
Essa inquietação já se mostrava nas minhas pesquisas com arte, por
volta de 1975, com experimentos em escultura. A ação de recortar uma placa
de metal planificada, em espiral, fez com que ela se libertasse, num “explodir”,
na tridimensão, podendo ser articulada no espaço: chamei-a de Libertação.
Livre, pôde ser articulada pelo fruidor em movimentos vários.
Essa escultura me remete à obra de Ligia Clark ao iniciar sua pesquisa
no concretismo, onde explora os potenciais dos planos e a relação espacial.
Firma uma postura renovadora quando constrói seus quadros sem moldura,
onde sua experiência, “se desenrola entre dois pólos: o de afirmar a superfície
plana aberta para o espaço e ao mesmo tempo ultrapassar-lhe a
bidimensionalidade” (GULLAR, 1980, p. 7-12).
Quando de sua participação do grupo neoconcretista, segue com
experimentações na busca de soluções próprias de como integrar artista, obra
e fruidor. Lygia Clark cria objetos e os coloca para livre manuseio pelo fruidor.
Ela rompe, abre, questiona e poetisa e faz viver com seus objetos.
O que é singular no método de Lygia é atingi-lo no corpo do
espectador: colocá-lo on-line com as forças, rente à vida;
lançá-lo no devir. Para chegar a isso Lygia teve de ir apurando
o objeto até um quase-nada. Isso poderia ser entendido como
um ’não-objeto’, conceito forjado por Malevitch no começo do
século, em voga nos anos sessenta (ROLNIK, 2006, s/p).
Outra artista a quem me referencio é Niki de Saint Phalle. Na década de
50, faz seus primeiros trabalhos, que se constituem de uma relação de força e
submissão, oposição do feminino e masculino, em que usa materiais que são
jogados fora e objetos industriais como machados, facas, revólveres em
contraponto com utensílios de uso doméstico. Atitude de repulsa e fascínio em
sentimento ambíguo. E encontro sentido no comentário de Arreola:
[...] a incorporação de coisas jogadas fora e de objetos, não
pode ser percebida unicamente como uma reação iconoplasta
e antiestética, mas sim deve ser interpretada como um gesto
poético que visa a propiciar uma nova aproximação da
individualidade. Numa tentativa de fugir aos limites impostos
pelos suportes, conseguia envolver o espectador no processo
criativo (1997, p. 14 e15).
Reafirmo, aqui, a questão central dessa dissertação: Como transformar
o material objeto (agendas) em objeto poético? Que conceito é esse que busco
dar ao objeto?
Caminho na busca de respostas, tanto no fazer como no sentido teórico,
histórico e em artistas que tenho como referência.
Em seu livro “Arte Contemporânea”, Archer (2001) conta como as
categorias em que eram divididas as produções artísticas, estavam sofrendo,
de maneira mais radical a partir dos anos 50, uma enorme revolução.
Conceitos e valores como originalidade, unicidade, autonomia da obra de arte,
“qualidade”, “expressividade” e perenidade estavam perdendo o sentido no
contexto inicial da arte contemporânea. A desmistificação da obra de arte já
estava presente no espírito contestador e irônico dos dadaístas em relação ao
meio artístico e em relação à arte versus mercado. A atitude de Duchamp, ao
transformar conceitualmente um objeto industrializado sem nenhum apelo
estético em uma obra de arte, mesmo que seu gesto no primeiro momento
tenha sido de ironizar o sistema das artes, tornou-se um marco na ruptura da
representação artística. Quando em 1917 “retirou” o urinol da sua função e o
deslocou para uma possível apreciação estética, provocou uma série de
questionamentos sobre a própria natureza da arte.
Tantos outros artistas trouxeram para o fazer artístico os objetos e
materiais do cotidiano, fabricados numa sociedade voltada para o consumo.
Quanto ao objeto pronto trazia a desmistificação da obra de arte única, original
e sacralizada.
[...] há o desafio direto contra a obra de arte, o desejo de
eliminar sua aura, dissimular seu halo sagrado e questionar
sua posição de respeitabilidade no museu e na academia, há
ainda a suposição de que a arte pode estar em qualquer lugar
ou em qualquer coisa. (...), a arte deixou de ser uma realidade
protegida e separada; ela ingressa na produção e reprodução,
de modo que tudo, mesmo que seja a realidade cotidiana e
banal, é por isso mesmo classificado como arte e se torna
estético (FEATHERSTONE, 1995, p. 99 e 101).
Indago-me: Qual caminho seguir? Pesquiso em leituras e ao trabalhar
plasticamente com as agendas.
Frente às minhas agendas, a idéia mais configurada surge numa
primeira etapa: pranchas de diferentes formas e tamanhos, forradas com
colagem de pedaços de páginas das agendas, reproduzidas em cópias,
formam tabuleiros como suporte e pequenos objetos.
A criação dos tabuleiros vem da relação com os elementos que brotam
das agendas: palavras, letras, imagens, história, desenho, escrita. Alguns
objetos se integram aos tabuleiros, são objetos da natureza (penas, pedras,
madeira, bambu) alguns colecionados e outros construídos.
As páginas das agendas multiplicadas pela reprodução em fotocópias,
transformam-se em pintura-colagem, corporificando uma materialidade que
encaminha a construção da imagem poética. Corporeidade que explora
diferentes meios e materiais como fotocópias, recorte/colagem, pintura,
papietagem e assemblagem.
Surgem novos símbolos para as páginas repletas de letras e palavras,
tornando-as suporte (enquanto na agenda é o papel que as suporta) e trazendo
nova simbologia em composições diversas.
A inserção de recortes colados de outras escritas fazem alusão a outros
códigos, como de surdos, cegos e de outros povos. Relações com outras letras
e palavras de outros sistemas gráficos entram como que fechando a questão
do significado do ler e entender, passando assim, a ter mais força como
imagem.
Pedaços que se reconstroem, com sobreposições em novo diálogo, de
recorte/colagem/pintura em tabuleiros e objetos que geram o lúdico, um jogo
em sua forma de confecção e manipulação, um jogo com poucas regras, que
intitulo como jogo poético.
Ilustração 3: Tabuleiro (0,40 X 0,40)
Ilustração 4: Tabuleiro (0,40 X 0,30)