08. Transcotidiano
8. TRANSCOTIDIANO
“No ato criador, o artista passa da intenção à
realização, através de uma cadeia de reações
totalmente subjetivas. Sua luta pela realização é
uma série de esforços, sofrimentos, satisfações,
recusas, decisões que também não podem e não
devem ser totalmente conscientes, pelo menos no
plano estético. O resultado deste conflito é uma
diferença entre a intenção e a sua realização, uma
diferença de que o artista não tem consciência.
Esta falha que representa a inabilidade do artista
em expressar integralmente a sua intenção; esta
diferença entre o que quis realizar e o que na
verdade realizou é o “coeficiente artístico” pessoal
contido na sua obra de arte.”
(DUCHAMP, 2002, p. 71/74)
Como artista plástica e pesquisadora expresso o possível, o que não
invalida o inexpresso que fica intencionado. Percebo o quanto caminhei nessa
trajetória e o quanto ainda tenho por caminhar. Sinto que tanto como artista,
como pesquisadora tenho atualizado referências artísticas, históricas e
culturais.
Muito do todo pesquisado não está aqui transcrito, por essa pesquisa ser
desenvolvida na área de produção, contendo o suficiente para dar sustentação
ao que a artista-pesquisadora objetiva.
A escrita contribui para o amadurecimento do processo criativo,
paralelamente ao produzir a obra e pesquisar historicamente.
Desenvolvo essa dissertação em plena sintonia com a fenomenologia. O
olhar fenomenológico fundamenta a questão do viver o processo da produção
da obra e ao mesmo tempo refletir a respeito dela. Ao viver o fenômeno no aqui
e agora, olhar para o passado, rever, fazer, escrever e voltar a fazer, vivencio
como artista a experiência da transformação dos objetos em obra artística, e
como pesquisadora construo um corpo filosófico/teórico para essa vivência,
incorporada tanto na produção plástica como na escrita.
Outro ponto desse processamento é a postura da artista/pesquisadora
frente aos seus sentimentos, pensamentos e sua ação, sendo essa
triangulação necessária a qualquer atitude frente à vida, e que nesse processo
se deu por inteiro, em busca da sua verdade em arte.
Ao mesmo tempo em que desenvolvo essa dissertação e crio em arte,
leciono artes visuais em diferentes cursos de especialização, sendo eles: artes
visuais, arte educação, psicopedagogia, arteterapia e brinquedoteca, além de
atuar em atelier terapêutico.
Essa experiência concomitante trouxe a oportunidade, como
professora/pesquisadora, de refletir frente a diferentes formações e atuações
profissionais na área das artes visuais, como em:
Arte Educação – com o objetivo de trabalhar o outro, seja em qualquer
idade, e faixa de escolaridade, para que este possa ter a linguagem da arte
como fonte de expressão e comunicação de seu interno e leitura do mundo.
Tenho como percepção que o papel do arte educador é o de estimular a
expressão criativa e poética no outro – o seu aluno -, e incentivá-lo a pesquisar
a sintaxe da linguagem da arte, os materiais e técnicas e a história da arte, de
forma que a aprendizagem se dê integralmente.
Quando essa atuação se dá em Brinquedoteca, a arte e o lúdico se
integram, onde o brincar é para a criança ou para o adulto, um exercício de
criatividade e do olhar poético.
Psicopedagogia – objetiva trabalhar o outro, numa situação clínica ou
institucional, facilitando a aprendizagem, dentro de uma postura terapêutica,
onde os conhecimentos de processos terapêuticos, de aprendizagem e
artísticos facilitam os desbloqueios emocionais a caminho do cognitivo.
Arteterapia – objetiva trabalhar com o outro de forma terapêutica, para
que este se conheça melhor e favoreça uma vida com maior qualidade, onde
os potenciais e as fragilidades convivam e nutram o criativo na arte e na vida,
fazendo-o descobrir sua poética e reafirmá-la socialmente. O olhar
arteterapêutico busca facilitar a expressão criativa do outro, de forma que ele
perceba seu estilo pessoal na arte e na vida, trabalhando de forma poética e
metafórica questões das relações do cotidiano e recrie poeticamente na vida.
Artes Visuais – objetiva a busca do próprio caminho como artista e a
qualificação como professor, com a pesquisa no campo das artes visuais, o
desenvolvimento de um projeto artístico pessoal, bem como a exposição da
obra realizada. Trabalha a arte como expressão do criativo e do poético, o que
me inspira e estimula a pesquisar, a produzir a obra e mostrá-la ao público
fruidor.
Essas diferentes experiências profissionais trazem ao desempenho
frente à arte, múltiplos olhares, onde a linguagem das artes visuais é o foco e a
alfabetização artística deve ser estimulada por processos como:
126
- sensibilização do sensorial, perceptivo, afetivo, simbólico e criativo em
sintonia com o poético, usando recursos internos apreendidos em experiências
pessoais.
- fazer artístico que valorize essa sensibilização, seja ela ativada por
exercícios ou pelos acontecimentos do dia-a-dia, e que se manifeste em
materiais e técnicas das mais variadas, para ampliar as experiências na ação
artística, sempre em paralelo com a referência do momento histórico em que
elas se inserem.
- estudo da sintaxe da linguagem visual em paralelo ao fazer artístico,
em contato com o experimento, de forma a trabalhar a alfabetização visual.
- história da arte paralela à vivência prática, entrando em contato com a
história universal, momento histórico/social, artistas e obras, pontuando que
somos parte integrante desse percurso histórico.
- leitura da obra de arte, a fim de ampliar recursos visuais e a
capacidade de leitura e crítica dentro das artes visuais.
O desempenho profissional tem interferência direta no processo de
pesquisa em produção em artes visuais, o que me estimula fortemente a
produzir e a refletir diante da pesquisa plástica e histórica, de forma a sentir-me
integrada com o papel de artista plástica e pesquisadora, diretamente atuantes
nessa dissertação.
Eu, atuante como artista plástica, com um olhar poético, diante das
agendas, pegando, abrindo, sentindo o cheiro, olhando, lendo-as, refletindo,
busco uma sintonia do poetizar, atuante em ações que ficam num estado de
consciência mais distante e que se manifestam e expressam nas ações das
artes visuais, em seus elementos plásticos. Um olhar e uma conversa poética,
subjetiva-objetiva, onde o objeto fica de intermediário desse olhar para dentro,
para fora, em torno, na triangulação do sentir, pensar e agir, numa dialética de
expressões.
Eu, atuante como pesquisadora, com um olhar reflexivo, que digere o
que é feito em arte como artista e pesquisa a ação criativa, contextualizando-as
dentro de momentos da história da arte onde o objeto e a intervenção por
certos meios mixados usados pela artista (colagem, letras, rasgos, recortes,
queimas, aguadas) têm referências em artistas e suas obras (Lygia Clark e
outros), teorias de pensadores e filósofos, que fundamentam a ação e o tempo
em que ela acontece (pós-modernismo). Ações na escrita, e em
documentações como fotos, um reescrever que acompanha o processo de
criação.
Nessa trajetória, desde o projeto até então, atuante como artista plástica
e pesquisadora, tenho como centro dessa pesquisa, o objeto, e percebo o
quanto ele tomou forma e presença em minha práxis artística, com referências
contemporâneas, em busca a questões do conceito que o introduz como objeto
artístico.
Entendo a questão do objeto como impregnado da história pessoal e
arquetípica. Memória acionada e expressa em lembranças e simbologias
retiradas da experiência do real para o mundo da arte, voltando a articular na
vida, em sentido poético.
O conceito cotidiano introjetado nesse objeto, impregnado de ação
objetiva, passa pela transmutação, transformando-se, quando em contato com
o criativo, com o poético, o fazer artístico, a leitura em arte e as reflexões. É o
cotidiano sendo transformado pela arte, transmutado pela poética do objeto.
A busca pelas agendas, como objeto, define o inicio de uma caminhada
no sentido poético do objeto dentro do contexto do contemporâneo, culminando
numa produção poética inserida nas artes visuais.
Das imagens formadas pela marcas, letras, palavras, rabiscos, do jogo
poético às agendas-objeto, ocorre o movimento, a transformação:
- do objeto ao objeto poético;
- do cotidiano objetivo ao subjetivo poético;
- da bidimensionalidade para a tridimensionalidade;
- do tempo real para o virtual voltando ao real;
- do fruidor ao participante ativo;
- da pessoa que atua no cotidiano para a artista que poetiza o cotidiano.
As marcas incidem sobre o papel e remontam registros pessoais, que
numa mixagem de materiais transcendem o significado de cada palavra,
imagem caligráfica. Compõem um jogo que vai além do cotidiano,
transcotidiano, e chega até o fruidor, como participante ativo. Interfiro nas
agendas e crio as agendas-objeto.
Percebo que a minha produção artística perpassa por alguns tópicos da história
da arte, numa busca do expressar-se pela linguagem contemporânea:
- A necessidade do objeto como expressão, aliado à mixagem de materiais, e
outras ações já relatadas anteriormente, e inseridos historicamente.
- O desafio de construir algo que tenha como conceito a transformação do
cotidiano, num todo de significação, tanto na materialidade física como
espiritual, com uso de materiais como interferência para gerar um processo de
ressignificar as agendas poeticamente.
- A forma de construção com minhas marcas e as marcas dos fruidores, que
vão sendo deixadas à medida do manuseio do jogo poético e das agendasobjeto,
em busca do processo criativo-poético da artista e da participação do
espectador de forma mais próxima da obra.
- O abrir para a participação do fruidor num âmbito social, apresentando a obra
em espaços diversos, de forma pessoal, direta e liberta.
- O jogo poético que amplia a visão e plasticamente remete a outras culturas.
- A indagação de como o objeto poético pode atuar frente a tempos de pósmodernidade.
Diversos são os conceitos que podem ser dados a um objeto em arte,
mas essa pesquisa revela a busca de um conceito que acolha e dê sentido à
obra da artista/pesquisadora. Um conceito que englobe todas as questões do
interesse da artista, como usar de multi meios, facilitar a inter-relação com o
fruidor de forma próxima, e dar foco ao tema agenda/cotidiano/transcotidiano,
dentro da atualidade. Executa o processo criativo e a obra, a pesquisa da
história da arte, artistas e alguns conceitos em filosofia, para caminhar ao
encontro do preenchimento dessa busca.
Desta forma, o fato de não encontrar correspondência direta em obras
de alguns artistas pesquisados também lhe dá referências. Conhecer as obras
e o conceito nelas introjetado amplia o conhecimento e a percepção de que a
não identificação de conceitos também é uma referência, sendo assim, abre
um leque de possibilidades para a utilização de objetos no campo das artes
visuais. Desta forma, a escolha deve ser feita, pela artista/pesquisadora, com
consciência pessoal e histórica.
Ao penetrar no universo da história da arte e perceber esses conceitos
diversos relacionados à pesquisa pessoal e inseridos nas questões próprias de
uma época, vem a confirmação e a extensão da indagação primeira: para
tornar um objeto do cotidiano em objeto de arte, há de conceituá-lo e inseri-lo
numa visão histórica.
A obra de Lygia Clark traz referências na abertura da bidimensão ao
espaço, na questão de ser “propositora”, das esculturas articuláveis e trazer o
público para dentro da obra o que, no jogo poético, a artista/pesquisadora
buscava atingir.
Percebo que o que buscava não pertencia à mesma ordem de
profundidade do conceito que a obra de Lygia Clark atinge, quando coloca o
corpo do fruidor como suporte, num sensorial levado até as últimas
conseqüências.
Experiencio o desafio do objeto como artista plástica, não abdicando dos
meus papéis de arte educadora e arteterapeuta, assim como Lygia Clark o fez
na exposição de 2006, sem necessidade de estar presente como propositora,
onde a sua obra artística é quem “fala” e ativa o brincar, o jogo e o
experimentar, instaurando no participante um gesto que reverbera em atitude
aberta, lúdica e criativa frente aos objetos e fatos do cotidiano.
Ela reativa o que é dela em mim, reafirma acima de tudo, o potencial de
ser humano que sente, pensa e é capaz de uma ação criativa, poética e viva
frente à arte e a vida. Viver poeticamente para fazer da vida uma arte e viver a
arte de forma a criar e recriar a vida poeticamente.
Deixa-nos sim, uma questão! Como em tempos de pós-modernidade,
podemos resgatar esse ser inteiro, atribuindo à arte essa energia de tocar o
humano que há no ser humano?!
Levar arte a quem quer que seja, com o olhar poético como resgate da
valorização do humano e do criativo no ser humano, para que seja usado em
benefício de si próprio e de seus valores mais íntimos, para ser entregue aos
paradoxos do viver e entrar em contato poeticamente com a vida.
Volto à minha busca, e no momento do enfrentamento das agendas,
trabalho com interferências diretas que me levam à procura de outros materiais
e pesquisar historicamente onde me referir.
Nessa busca entre vários conceitos de objeto e no que acolhe o meu
processo frente às agendas, encontro referências no livro-objeto, categoria
mesma do livro de artista. Neste momento, observo o que acontece nessa
caminhada: a princípio, uma “busca”, quando da criação do jogo poético traz
questionamentos e encaminha para o “encontro”, onde o livro-objeto dá suporte
às questões levantadas, como um gestar que gera a produção.
Encontro, nessa fase, os livros-objeto situados na mesma época (anos
50/60) e advindos das bases do mesmo grupo a qual Lygia Clark pertencia
(neo-concretismo), com obras que trazem a escrita para o objeto (literatura e
artes plásticas), tal qual minhas agendas, com forma próxima a de um livro e
com imagens caligráficas.
Surgem outras proximidades entre os objetivos iniciais dessa
dissertação e as características dos livros-objeto: no uso de materiais diversos
para a interferência e a relação íntima do fruidor com a obra. O conceito que
está impregnado em minha produção em artes visuais encontra em um grupo
de artistas e suas obras uma referência que traz para as agendas-objeto um
caminho dentro da história da arte.
As agendas parecem querer conter um tempo, onde o tempo é do fazer
objetivo, da ação no dia-a-dia, o movimento fica por conta do riscar, rabiscar,
sinais que transformam e dialogam com as palavras, onde o sentido semântico
e o sentido simbólico conversam. Agendar é marcar no tempo e no espaço, a
princípio com a ingenuidade de quem pode dar conta de tudo, passando a
perceber o ininterrupto curso com que essas tarefas do cotidiano se dão.
Marcam acontecimentos, horários, planejamentos, orçamentos, nomes e
relacionamentos.
O poetizar em arte é recriar num sentido simbólico, transformando o
olhar e a percepção daquele registro, num processo de negação, assimilação,
ressignificando o existir, a vida. É um portal que se abre ao trans-portar, transformar,
trans-ferir, trans-mutar. Ao divinizar registros, processar
acontecimentos, pontuar fatos, as palavras, os símbolos se mostram como
imagens que registram o passado e se colocam na história ao lado de outros
códigos e culturas. Culturas pertencentes ao universal, que transitaram ou
ainda transitam entre nós.
Sinto-me inserida num momento histórico, do pós-moderno, onde essa
conversa dentro da agenda fala da angústia do tempo, do não dar conta, do
movimento rápido do tempo, do caos ser intermediado pela organização na
agenda, que se caotiza na imagem de riscos e rabiscos pela própria ação do
viver nesse tempo. Percebo que a arte vem em meu favor, quando consigo
dialogar poeticamente, em pausas musicais, em poesias, em escritos
metafóricos, em frases filosóficas, e quando posso interferir nessas agendas
passadas e ressignificá-las como um processo do viver momentos e
transformar o cotidiano de cada dia em um transcotidiano.
Extraio de dentro delas os sentidos do viver, onde palavras e sinais se
corporificam em objetos, materialidade que “conversa” com o fruidor em
contato direto ao olhar, manusear, ler e reelaborar. E, assim, participa da obra
construindo uma agenda que marca a sua interação num determinado dia e
hora, onde tem a oportunidade de registrar e poetizar esse momento numa
agenda pública, reconstruindo o fato do cotidiano numa formação poética em
arte em conjunto, trazendo para si a leitura da obra da artista, numa reflexão
artística em conjunto, coletiva, e que marca o tempo da exposição, seja ela
onde e quando for.
Desta forma, o transcotidiano é acionado tanto para a artista como para
o fruidor. Ao abrir as agendas ao público, faço-o para que participem de minha
intimidade no dia-a-dia, contribuindo para que o poético conviva com o
cotidiano e o transforme em transcotidiano.
As agendas-objeto, transmutadas em obra de arte, transformam o
cotidiano em tempo de Kairós, do criativo, da poesia, do brincar, do jogar, das
artes visuais, um tempo de Transcotidiano, o poético das agendas-objeto.